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Breve histórico do uso das terapias convulsivas em psiquiatria

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Breve histórico do uso das terapias convulsivas em psiquiatria


Alexandre A. J. Vasconcelos*

“As nuvens que Deus põe sobre a profecia, o tempo as gasta e as desfaz; mas os véus que os homens lançam sobre os próprios olhos, só eles os podem tirar, porque eles são os que querem ser cegos.”
Padre Antônio Vieira

Primórdios

De acordo com Mowbray em seu relato de 1959, o famoso médico suíço Paracelso (1493-1541) teria sido a primeira pessoa a utilizar a indução de convulsões para o tratamento de transtornos psiquiátricos através do uso da cânfora (Abrams, 1988). Relatos isolados do uso da cânfora em circunstâncias semelhantes só são encontrados novamente no século XVIII, como por exemplo, Kinneir em 1727 (Krzyzowski, 1989). A primeira publicação escrita a respeito desta aplicação no entanto é a de Leopold von Auenbrugger em 1764 que teria utilizado a substância para o tratamento de um caso de mania vivorum. Em sua monografia de 1776, Auenbrugger descreve 11 casos de mania ou melancolia tratados de maneira semelhante, muitos apresentando uma melhora importante de seu estado. As convulsões eram em número de seis a 12, sendo respeitado entre elas um intervalo de alguns dias (Stone, 1999). Em um relato de caso publicado em 1785 em um periódico médico inglês, William Oliver descreve o uso exitoso da substância em um caso de melancolia, provavelmente o primeiro artigo descrevendo o uso de uma terapia convulsiva em uma depressão (Freeman. 1993). Weickhardt em um livro-texto vienense de 1798 descreve o sucesso obtido com convulsões induzidas pela cânfora em oito de dez pacientes com o diagnóstico de mania. Alexander e Selesnick (1966) citam a aplicação de um tratamento eletroconvulsivo em 1755 pelo francês J. B. Le Roy em um caso de cegueira psicogênica, o que poderia ser o primeiro uso da eletricidade induzindo uma convulsão para o tratamento de transtornos psiquátricos. A fonte da eletricidade não é mencionada, sabe-se porém que o uso de tal recurso era praticado pelos antigos romanos com o emprego de enguias elétricas para o tratamento de cefaléias. Estas experiências esparsas não tiveram seguimento nem criaram escola ou um arcabouço teórico que pudesse servir de base para desenvolvimentos posteriores na área, caindo em total esquecimento.

A Cardiazolterapia de Meduna

Baseado em seus estudos neuropatógicos realizados nas décadas de 1920 e 1930, que indicavam um suposto antagonismo entre a esquizofrenia e a epilepsia (posteriormente não confirmado), o psiquiatra húngaro Ladislau von Meduna (1896-1964) desenvolveu o raciocínio de que a aplicação de um agente convulsivo em esquizofrênicos poderia trazer algum benefício terapêutico ou mesmo a cura para estes pacientes. Após a testagem em animais de diversas substâncias (entre elas estricnina, tebaína, cafeína e absinto) para a indução de crises convulsivas, finalmente a cânfora foi selecionada como a droga de escolha (Abrams, 1988). Em 1934, sem qualquer conhecimento do emprego anterior da cânfora na abordagem de transtornos psiquiátricos, Meduna iniciou o uso dessa substância em psicóticos com o intuito de provocar convulsões nestes pacientes e desta maneira obter um tratamento para sua condição.
O primeiro paciente selecionado para a aplicação do novo método apresentava um quadro de estupor catatônico e encontrava-se há quatro anos sem se alimentar, falar ou se levantar de seu leito. Dois dias após a aplicação da quinta injeção o paciente começou a falar, se movimentar e solicitar alimentação. Sua alta hospitalar se deu depois da administração de mais duas injeções. Ao cabo de um ano, Meduna publicou os resultados da aplicação de sua técnica em 26 esquizofrênicos, relatando melhora em metade da amostra, enquanto que a outra metade não apresentava alteração significativa em seu quadro clínico (Fink, 1984).

Após um curto período de uso, as injeções intramusculares da cânfora em solução oleosa foram substituídas por injeções intravenosas do pentilenotetrazol (um derivado sintético daquela substância), também conhecido como cardiazol ou metrazol, graças ao seu mais rápido início de ação e menor toxicidade. Devido à sua eficácia, o uso da cardiazolterapia espalhou-se rapidamente por todo o continente europeu, no entanto, as sensações de extremo desconforto ou mesmo de terror causadas por esta substância conforme relatadas pelos pacientes além de vários outros incômodos**, fez com que outros investigadores procurassem métodos alternativos para a indução das convulsões (Abrams, 1988).

Apesar do reconhecimento de seu trabalho em diversas partes da Europa, Meduna sofria severas críticas em seu próprio país. Em 1939, vivendo em um continente assombrado pela ameaça hitlerista e às vésperas do desencadeamento da segunda guerra mundial, Meduna partiu para os Estados Unidos*** onde permaneceu até sua morte em 1964 aos 68 anos (Fink, 1984).

A eletroconvulsoterapia (ECT) de Cerletti e Bini

Em 1935, Ugo Cerletti (1877-1963), professor de psiquiatria em Roma, realizava pesquisas na área de epilepsia com a indução de crises epilépticas em cães através do uso de correntes elétricas. Ciente do uso terapêutico das convulsões na abordagem de diversos transtornos psiquiátricos, Cerletti logo desenvolveu a idéia do emprego da eletricidade como uma possível substituta do Cardiazol no desencadeamento das crises convulsivas com o objetivo de abolir os episódios de terror vivenciados pelos pacientes na indução química, além de uma maior segurança, praticidade e economia. Os anos seguintes foram dedicados ao estabelecimento de parâmetros de segurança no uso da eletricidade nos experimentos com os cães, visando a posterior utilização do método em humanos (Shorter, 1997). Os testes revelaram uma grande diferença entre a dose de eletricidade necessária para causar uma convulsão e aquela capaz de ocasionar a morte do animal.

Finalmente, em 1938, era chegado o momento da aplicação de suas pesquisas e experimentos com a eletricidade em um paciente psiquiátrico. A oportunidade se deu quando um homem de 39 anos que se encontrava vagando sem rumo na estação ferroviária de Roma foi trazido pela polícia para internação. O paciente apresentava um quadro delirante persecutório com alucinações e discurso desconexo com uso de neologismos alternados com períodos de mutismo, sendo feito na ocasião o diagnóstico de esquizofrenia. Conforme apurado posteriormente esta foi sua terceira internação em uma clínica psiquiátrica com o mesmo diagnóstico tendo sido feito nas ocasiões anteriores. O aparelho utilizado fora construído por Lucio Bini (1908–1964), um jovem assistente do professor Cerletti e seu principal colaborador no desenvolvimento do novo método. Foram feitas duas aplicações consecutivas com cargas elétricas crescentes que não chegaram a produzir uma crise convulsiva. Apesar dos protestos do paciente, uma terceira aplicação com uma dosagem ainda maior foi efetuada, desta vez sendo seguida por um clássico ataque do tipo tônico-clônico. Após ser inquirido sobre o que lhe acontecera, o paciente respondeu calmamente: “Não sei, acho que eu estava dormindo”. Na ocasião, Cerletti denominou o método de elettroshock (eletrochoque). O homem recebeu alta hospitalar após 11 aplicações e um ano depois encontrava-se trabalhando regularmente em seu emprego anterior em Milão (Shorter, 1997).

Desenvolvimentos posteriores
Nos anos subsequentes, a ECT causou um grande entusiasmo entre os psiquiatras e experimentou um amplo uso por toda a Europa e Estados Unidos, tendo rapidamente substituído o emprego do cardiazol como desencadeador das crises convulsivas graças à sua eficácia, maior segurança e tolerabilidade por parte dos pacientes. O sucesso desta nova modalidade de terapia convulsiva no tratamento da esquizofrenia levou à sua testagem em outros distúrbios psiquiátricos e ao estabelecimento de novas indicações, como na mania e na depressão (Fink, 1979).

Em 1940 o psiquiatra Abram Bennet introduziu o relaxamento muscular com o curare e em 1952 a succinilcolina foi introduzida como droga de escolha para este fim. Barbitúricos de ação curta ou ultra-curta como o tiopental ou o metohexital foram introduzidos como anestésicos e o monitoramento das convulsões através do eletroencefalograma também passou a ser utilizado. Progressos também foram feitos com relação ao estabelecimento de um número adequado de administração dos choques e o intervalo entre os mesmos, o tipo de corrente elétrica utilizada, oxigenação adequada ou ainda a colocação unilateral dos eletrodos no hemisfério não-dominante (em oposição à localização bilateral) visando a diminuição de eventuais efeitos colaterais, especialmente aqueles de ordem cognitiva (Fink, 1979, Fink, 1984).
Nem todas as modificações propostas foram incorporadas à prática, como por exemplo o uso do inalante flurotil (indoklon) como agente convulsivante, administrado pela primeira vez em 1958 por Esquibil e colaboradores, a fotoconvulsão ou ainda a aplicação de descargas elétricas subconvulsivas (Kalinowsky, Hippius e Klein, 1982; Fink, 1984).

Conclusões

A década 1930 está certamente entre as mais fascinantes da história da psiquiatria. Juntamente com as terapias convulsivas, o tratamento pelo coma insulínico (1933) de Sakel e o desenvolvimento da psicocirurgia (1935) pelo neurocirurgião português Egas Moniz trouxeram esperanças de alívio ou cura em uma área onde anteriormente predominava o niilismo terapêutico. Destas abordagens, apenas a ECT continua a ser largamente utilizada até hoje. O coma insulínico foi abandonado devido principalmente às dificuldades em seu manejo e preocupações quanto à sua segurança, ao tempo em que as outras terapias tomavam seu espaço. Moniz veio a ser agraciado em 1949 com o prêmio Nobel de medicina, no entanto na atualidade as psicocirurgias quase nunca são realizadas em pacientes psiquiátricos (Shorter, 1997). Por sua vez, conforme dissemos, a cardiazolterapia foi virtualmente sepultada pela ECT.

Apesar do enorme impacto exercido pelo desenvolvimento dos psicofármacos a partir da década de 1950, a ECT ainda hoje, mais de 70 anos após a sua introdução, encontra indicações precisas de uso. Durante esta trajetória, seu status passou por altos e baixos, ao sabor de preconceitos, ignorância, ideologias e má-fé. Até o início da década de 1960 pouco se questionava quanto à sua prescrição. Nos 20 anos subsequentes, a ECT sofreu um violento ataque por parte do movimento da anti-psiquiatria que, em sua cruzada religiosa chegava a questionar a própria existência dos transtornos psiquiátricos ou na melhor das hipóteses considerá-los uma resposta compreensível de um indivíduo frente às pressões impostas pela sociedade capitalista. De acordo com esta crença, a ECT causaria danos irreversíveis ao cérebro (apesar das evidências em contrário) e o psiquiatra era visto (e ferozmente atacado) como torturador. O livro “Um estranho no ninho” de Ken Kesey, publicado em 1962, faz um relato fantasioso e ao mesmo tempo pavoroso da ECT, causando um duradouro impacto de sua imagem no imaginário popular****. Também a igreja da cientologia, estabelecida nos EUA, baseada nos princípios pseudocientíficos estabelecidos por seu líder, pretendia se estabelecer como uma alternativa ao tratamento dos pacientes psiquiátricos e tomou os psiquiatras e a ECT como inimigos, contribuindo da mesma forma para o ambiente que então se instalava (Shorter, 1997).

Em diversos estados dos EUA uma série de leis foram aprovadas restringindo ou mesmo proibindo a aplicação da ECT. Na Califórnia, por exemplo, seu descumprimento poderia custar ao médico a perda de seu diploma. Muito precisou ser feito por parte das associações psiquiátricas para que a partir da década de 1980 as prescrições de ECT voltassem a patamares anteriores (Shorter, 1997). Reflexos de toda esta batalha irracional contra a ECT podem ser sentidos até hoje em críticas mais ou menos violentas acerca do método*****. Em nosso país, ainda hoje, um movimento ideológico e sem qualquer fundamentação científica intitulado “Luta Antimanicomial” procura ressuscitar sua falecida irmã, a anti-psiquiatria, propondo inclusive a extinção do hospital psiquiátrico (sic).

No decorrer das próximas décadas observaremos o desenvolvimento e aperfeiçoamento de uma série de procedimentos terapêuticos em psiquiatria, tais como novos psicofármacos (mais eficazes e melhor tolerados), estimulação do nervo vago, estimulação magnética transcraniana, terapia convulsiva magnética, estimulação cerebral profunda, entre outros. É de se esperar que estas abordagens passem a ocupar um espaço cada vez maior e mais importante no armamentário psiquiátrico, substituindo em parte ou no total as antigas práticas, mas isto ainda é uma página a ser escrita.



* Médico, especialista em psiquiatra, mestre em neurociências e comportamento, licenciado em história.

** O cardiazol apresentava diversos inconvenientes, entre eles um período imprevisível entre a administração da droga e o desencadeamento da crise, vômitos, convulsões violentas predispondo fraturas ósseas e lesões no local de aplicação da injeção (Alexander e Selesnick, 1966; Krzyzowski, 1989).

*** De acordo com Fink (1984), ainda neste mesmo ano, Meduna recebeu convite para conferência em nosso país, oportunidade esta que, como sabemos, infelizmente não se concretizou.

**** O livro foi adaptado com o mesmo título para o cinema por Milos Forman (EUA, 1975), contribuindo para a manutenção dos preconceitos contra a ECT.

***** No filme “A troca” (EUA, 2008) dirigido por Clint Eastwood e baseado em fatos reais, a ação é ambientada nos anos 1920. Em um dado momento a personagem principal é trancafiada em um hospital psiquiátrico e submetida a uma aplicação de eletrochoque como punição a seu comportamento contestador, em que pese o fato de que naquela época o aparelho não existisse ainda.


Referências

Abrams, R. Electroconvulsive Therapy. Oxford University Press, 1988.

Alexander, F. G. e Selesnick, S. T. História da Psiquiatria. São Paulo: Ibrasa, 1980.

Fink, M. History of convulsive therapies. In: Convulsive therapy: theory and practice. New York: Raven Press, 1979.

Fink, M. Meduna and the origins of convulsive therapy. Am J Psychiatry, 141: 1034-1041, 1984.

Freeman, C. P. L. ECT and other physical therapies. In: Kendell RE, Zealley AK, eds. Companion to psychiatric studies. 5th ed. Edinburgh: Churchill-Livingstone, 1993.

Kalinowsky, L.; Hippius, H. e Klein, H. E. The convulsive therapies. In: Biological treatments in psychiatry. New York: Grune & Stratton, 1982

Krzyzowski, J. The historical development of electroconvulsive therapy. Eur J Psychiat, vol 3, nº 1 (49-54), 1989.

Shorter, E. Alternatives. In: A history of psychiatry. New York: John Wiley & Sons, Inc., 1997.

Stone, M. H. O século XVIII: a ascensão do racionalismo. In: A cura da mente. Porto Alegre: Artmed, 1999.






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