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O Lazareto do Francês e o Quartel de Abrantes

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Capa do terceiro boletim do Núcleo Alagoano da História da Medicina

Agatângelo Vasconcelos *

Durante os anos iniciais da segunda metade do século XIX, a Província da Alagoas e o Brasil exultavam pelo declínio da epidemia de febre amarela que castigara a Nação. O Presidente da Província, o Dr. Manoel Sobral Pinto, em sua “Falla” dirigida a Assembléia Legislativa no dia 13 de maio de 1853, evidenciava a sua satisfação pelo fato de que “Nenhuma epidemia de caráter assustador se há desenvolvido ultimamente na Província, graças ao Altíssimo, que com a bondosa e onipotente mão afastou de nós o flagelo da febre amarela, resta-nos contudo a bexiga, que com quanto seja combatida constante e efetivamente pela vacina, vai ceifando algumas vidas”.

Nos anos seguintes, lamentavelmente, as coisas seriam bem diferentes e muitos piores. Em maio de 1855 a cólera-morbo entrara em nosso país pelo Pará e, no dia 18 de novembro do mesmo ano chegaria a Alagoas atingindo inicialmente a Vila de Piassabussú. No dia seguinte atacaria a Cidade do Penedo, “... de onde a epidemia se expandiu por toda a região sanfranciscana e daí para outras regiões alagoanas, tendo ceifado a vida de mais de 17.000 pessoas”, informa Jayme de Altavila em sua “História da Civilização das Alagoas”.

A Antônio Coelho de Sá e Albuquerque, que nomeado Presidente Provincial em 8 de julho de 1854, tomou posse no dia 13 de outubro daquele ano, havendo permanecido no cargo até 13 de abril de 1857 e que foi o 25° Presidente da Província alagoana, coube a ingente tarefa de enfrentar a terrível moléstia originária do delta do Rio Ganges.

Em sua “Falla” dirigida à “Assemblea Legislativa” datada de 01 de março de 1855, às paginas 16 e 17, o citado governante noticia as providências que tomara preventivamente: “Sendo aterradoras as notícias chegadas da Europa no mez de Setembro do anno passado a cerca dos estragos produzidos pelo Choleramorbus (...). O Governo Imperial com louvável cautela reconmendou-me a construção de um (trecho ilegível) escolhi a costa do Porto do Francez, três légoas ao Sul desta Capital, onde as correntes de vento não podem danificar os povoados vizinhos, e onde podem ancorar em porto seguro os navios que trouxerem doentes a bordo, e que devem ser desinfetados. O Lazareto está em construção e em lugar oportuno tratarei desta obra”. O perigo ainda estava distante: na longínqua e também inóspita Europa daqueles tempos.

No ano seguinte, em sua “Falla” aos deputados, às páginas 06 e 07, contínua Sá e Albuquerque a relatar os preparativos da sua administração para o embate contra o temível vibrião, o qual permanecia naqueles dias ainda incógnito, pois somente seria descoberto após os trabalhos fundamentais de Snow, Pasteur e Koch, pouco antes de 1890. Informa ainda o Presidente, o Governo Imperial, confidencialmente, em outubro de 1884 dirigira-se às províncias marítimas avisando-as sobre a epidemia que poderia em breve acometer o nosso país, recomendando ao mesmo tempo severas medidas acauteladoras.

São palavras de Sá e Albuquerque: “...e não havendo nesta Capital algum prédio que podesse servir de Lazareto e estabelecimento de quarentenas, tão recomendados pela medicina como um dos mais efficazes meios preventivos contra a introdução de epidemias, ouvi a este respeito as pessoas mais habilitadas, e com ellas fui pessoalmente escolher ao Sul da Capital um logar adaptado para a construção do Lazareto. O Porto do Francez, quatro légoas ao Sul desta cidade, offerece os requisitos necessários para este estabelecimento e para a quarentena de observação que foi marcada no mesmo porto. Mandei logo levantar a planta e fazer o orçamento da obra para a qual me achava autorizado pelo Exmo. Sr. Ministro do Império, e sem demora foi ella encetada. Julguei também conveniente apressar a promptificação do hospital de caridade e do cemitério público desta cidade, os quais se achavam em princípio de suas construções (...). Em fins de Maio do anno passado manifestou-se e grassou na Província do Pará (...). A epidemia, dando um grande salto, manifestou-se na Bahia em fins de (trecho ilegível) já se achava então concluído o Lazareto do Porto do Francez e guarnecido dos móveis indispensáveis (...). Organizei instruções e tabela para regularizar o serviço e dieta do Lazareto e nomeei um administrador para aquelle estabelecimento”.

Quanto ao hospital e ao cemitério, na verdade, só a iminência da chegada da cólera fizera com que fossem aceleradas as suas construções visto que a necrópole fora criada por lei de julho de 1850 e a pedra fundamental de nosocômio havia sido colocada em 1851. No documento acima citado, observe-se, o Presidente reportava-se a fatos de 1855, quando a epidemia já alcançara as terras alagoanas. Fica evidente, porém, que o Lazareto fora construído a tempo. Por outro lado, ao tomar conhecimento da infausta chegada da doença à capital da Bahia, Sá e Albuquerque, acertadamente, preocupara-se com a cidade de Penedo, considerando-a como “o ponto mais arriscado da Província em conseqüência das contínuas e freqüentes relações com Praça da Bahia”.

Várias outras medidas sanitárias foram tomadas tais como: “o asseio e a limpeza da cidade” (SIC), a nomeação de um Provedor de Saúde para o Porto de Maceió, sendo ele o Dr. José Antônio Bahia da Cunha, a contratação de médicos, acadêmicos e cirurgiões vindos da Bahia. De lá também chegaram dois homeopatas, Marinz Porto e José Honório Coelho, os quais não cobraram honorários, conforme Luiz Sávio de Almeida no seminal livro Alagoas nos tempos do cólera. A Província criou uma Comissão Central para enfrentar a epidemia e cada povoação deveria ter uma Comissão de Socorro Público, contando com um médico em cada distrito.

Certamente nem sempre tal planejamento foi alcançado, inclusive devido ao pequeno número de profissionais da medicina que em Alagoas viviam na época. Quando a epidemia grassou em Alagoas, não obstante as providências governamentais, toda a Província foi atingida e deixaria em seu rastro a cifra já mencionada de óbitos. Considere-se que a Estimativa Pedro Paulino da Fonseca apontava para 244.943 habitantes em Alagoas em 1859 e que Thomaz Espíndola acredita na presença de 249.687 habitantes em 1860.

Fernando Gomes e Márcia Monteiro, na obra A saúde em Alagoas no Brasil Império, apresentam os “caminhos e descaminhos” (SIC) da nossa Saúde Pública no período considerado.

Dentre os desvios, aumentando as proporções da tragédia, destacaram-se a desorganização dos serviços hospitalares e mortuários, bem como o “sumiço” de medicamentos. Daí o avanço da moléstia, o terror instalado na população e o endividamento do governo alagoano. Aqueles autores citam a Luiz Sávio de Almeida: “Falsificavam medicamentos vindos da Corte. Botica em Maceió estaria vendendo material deteriorado (...) não se sabia o destino do material hospitalar (...) elementos de proa eram acusados de fornecer recibos falsos”.

Por outro lado, embora o heroísmo de tantos profissionais da saúde, a medicina de então era parca de recursos terapêuticos de real valor e no Brasil baseava-se nas teorias hipocrático-galênicas advindas do tradicionalismo vigente em Coimbra e Salamanca e buscava, acima de tudo, reequilibrar os humores para tanto empregando os vomitórios, as sangrias e até os laxativos e purgativos, ainda que na presença dos terríveis sintomas desencadeados pelo vibrião. Contudo, outros recursos também eram empregados: infusões diversas, extratos flúidos, substâncias para esfregar no corpo etc. No Brejo da Madre de Deus surgiu um licor denominado “robertina anticolérica”, formulado por um certo José Roberto da Cunha Sales, todavia não sabemos haver sido este remédio empregado entre nós.

Ressalte-se que na desigual batalha contra o mortal inimigo, muitos profissionais foram contaminados ao exercerem o seus difícil mister, enquanto outros tantos perderam familiares próximos sem quer nada podessem fazer. Dentre eles citemos o médico pilarense Antero Américo Lopes Rodrigues, o qual após “ver sucumbir ao contágio da moléstia a sua querida mãe, a morte veio a arrebatá-lo quando tinha apenas 25 anos de idade. Segue-lhe o pai, vitimado também pela cólera” (Renan Falcão, Contribuição para a história da medicina em Alagoas, in Revista do Arquivo Público de Alagoas, n°1:151-198,1962).

Lembremo-nos ainda, na época imperava a teoria miasmática, daí acreditar-se que as doenças infecciosas eram contraídas pelo ar e não pelo contágio de pessoa a pessoa. Esta suposição em muito dificultava, na prática, a prevenção.

O Lazareto do Francês teve breve existência funcional. O fato é que, já em 1871, assinala Thomaz Espíndola em sua A geographia alagoana: “Neste porto ( referindo-se ao do Francês ) existe em ruínas o antigo lazareto dos coléricos, mandado edificar em 1855 pelo conselheiro Antônio Coelho de Sá e Albuquerque”. Situado a cerca de 7,50 milhas náuticas do Porto de Jaraguá, em Maceió, era de difícil acesso seja por via fluvial ou terrestre. E sem um cais para a atracação das embarcações que lá chegassem por mar, tornava complicado o desembarque de enfermos, funcionários, remédios e mantimentos.

Sara Azevedo Martins em sua monografia: Lazareto: ruínas de uma época, descreve a arquitetura e as dimensões do prédio. Era ele de tamanho reduzido quando comparado aos seus congêneres de Salvador e da Ilha Grande, não medindo mais do que 19.50m por 13,50m. Sua forma era retangular com cobertura em duas águas. Internamente oferecia um vão maior para enfermaria e três áreas de serviço, além de uma cisterna.

Finalmente a epidemia passou. Em 1858 o Presidente Ângelo Thomaz do Amaral em sua “Falla”, mostrava-se tranqüilo ao afirmar referindo-se à cólera: “No mês de Julho do ano passado apareceu esporadicamente no povoado do município de Palmeira dos Índios denominado Monte Alegre acometendo varias pessoas, 6 das quais falleceram mas parou por ali”.

Concluído, o ciclo epidemiológico, a moléstia afastara-se. Mas como diz Moreno Brandão em O Centenário da Emancipação de Alagoas, “Deixou tão indelével lembrança a funesta epidemia que ainda hoje no meio das camadas populares (...) sendo comum ouvir-se: tal facto teve lugar pela primeira cholera”.
Desditosamente o maléfico visitante logo voltaria, o que já o fez em 1862. As suas visitas na ultima década do século passado, mais uma vez como epidemia, mostram-nos que pouca coisa mudou no que se refere à Saúde Pública: é mal planejada, recebe recursos financeiros e humanos claramente insuficientes e muitas vezes esses últimos são inadequados.

Para agravar ainda mais esta caótica situação, surgem com freqüência os modernos “sanguessugas” encastelados nos seguimentos político – administrativos da Nação. Eis porque as ruínas do Lazareto do Francês e os registros da época, ao serem cotejados com os fatos do presente, dizem que permanecemos no Quartel de Abrantes.
Foto:Lazareto do Francês
(*) é médico e escritor

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3 Comentários
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  1. Quem bom ver que a minha incansável pesquisa sobre informações do Lazareto do France serviram de referência para a divulgação da história da nossa Alagoas! Muito bom poder contribuir com a preservação da nossa memória! Abraços, Sara Azevedo Martins (saraamartins@yahoo.com.br)

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  2. Gostaria de saber a fonte desta imagem da matéria. Qual é esse livro que tem essas fotos do lazareto publicadas?

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  3. Boa noite Jaianny
    A foto é do livro do Núcleo Alagoano da História da Medicina

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