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O fim da Pediatria?

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História da Medicina


Antonio Samarone de Santana

Academia Sergipana de Medicina



A saúde da criança foi a grande missão da Saúde Pública no século XX. A puericultura criou corpo com a revolução bacteriológica, e expandiu-se em sua tarefa civilizadora. A mortalidade infantil, a desnutrição e as doenças infecciosas foram enfrentadas com sucesso. A higiene infantil difundiu-se pela ação educadora de médicos e professores. Surgiu a pediatria como especialidade.

Em Sergipe, por iniciativa do Dr. Augusto Leite, criou-se o Hospital Infantil, a Casa Maternal Amélia Leite e os Centros de Puericultura, tudo dirigido para a proteção da criança. O Dr. Lauro Dantas Hora, nosso primeiro pediatra, organizou o Departamento da Criança no Centro de Saúde Serigy, na década de 1940. A rede cresceu, consultórios e clínicas privadas funcionavam com regularidade.

Vários colegas destacaram-se como pediatras: José Machado de Souza, Paulo Carvalho, Hyder Gurgel e Byron, para ficar somente entre os professores da faculdade.

A rede pública, montada a partir do PIASS, ofertava serviços de pediatria em toda sua rede, claro, dentro das limitações orçamentárias daquele período, e o velho INAMPS, a seu modo, cobria com os mesmos serviços a sua clientela. Clínicas privadas floresceram (Sobaby, Hospital São Domingos Sávio, a Clínica Preventiva do Dr. Paulo Carvalho, etc.). A pediatria tornou-se uma especialidade ascendente e prestigiada.

Entretanto, ultimamente a pediatria vem passando por uma grave crise. O que está ocorrendo com a atual política de saúde, que está levando a pediatria a essa falência múltipla? A explicação dos gestores é simplória: - “faltam pediatras”. Entretanto, a realidade desmente: Pediatras existem, e ainda em bom número, mesmo com os seus espaços profissionais restringidos. Na verdade, o que estão acabando são os espaços para o exercício da pediatria. 

Procura-se, propositalmente, confundir a opinião pública, passando-se a versão de que a ausência de serviços de atendimento à criança deve-se a inexistência de pediatras. É claro que muita gente deixou a pediatria e que os recém formados tem baixo interesse na especialidade, entretanto, esse fato é conseqüência da distorção da política de saúde. O mercado de trabalho foi reduzido, os trabalhadores naturalmente procuram outros meios de subsistência, como em qualquer setor da sociedade. Em resumo: é a extinção dos serviços de pediatria que tem levado a redução do número de pediatras, e não o inverso.

A questão permanece: e o que é que está levando a redução dos serviços de pediatria, gerando seu enfraquecimento? Na medicina privada, é o fato da especialidade pediátrica não ter incorporado a sofisticação tecnológica de outras especialidades, e em decorrência, dificultar a realização do valor do capital investido, reduzir os lucros, dificultar a mercantilização e, em decorrência, interessar pouco ao empresariado médico.

Na medicina pública, o Sistema Único (SUS) ao invés de socializar o acesso através da tão prometida universalização, está socializando o trabalho médico, fragilizando sua importância, substituindo cada vez mais o trabalho vivo por máquinas e equipamentos (trabalho morto), e remunerando melhor o capital do que a força de trabalho.

O fato da limitação da atividade do “pediatra” no Programa de Saúde da Família, substituindo-o pelo “generalista”, o chamado médico da família, foi decisivo para a redução dos espaços institucionais da especialidade pediátrica. Ou seja, as vagas no mercado de trabalho para os pediatras foram reduzidas nos serviços públicos, e não o contrário, como se tem afirmado.

Afirmar que os pediatras continuam como referência da rede, e que os postos de trabalho foram mantidos é sofismar em cima da realidade. A comparação dos postos de trabalho precisa levar em conta a ampliação da cobertura do sistema de saúde e o aumento da população infantil. A questão é saber qual o percentual de pediatras entre o total de médicos no serviço público, antes e agora? Essa resposta confirmará o ponto de vista defendido neste texto. 

Entretanto, o dia-a-dia está mostrando que se na rotina ambulatorial da rede básica foi possível substituir o pediatra, mesmo com grave prejuízo na qualidade do serviço, mesmo com a insistência das mães em continuarem pedindo pediatras, nos serviços de urgência essa troca está sendo inviável. O generalista não assume a responsabilidade pelo plantão de urgência em pediatria, o conhecimento especializado é indispensável, e aí, aparece o principal problema da atual crise: onde estão os pediatras para, a preço vil, assumirem esse atendimento? Ficou claro o diagnóstico do problema? O mesmo sistema que, atendendo certos interesses, suprime os espaços da pediatria, busca desesperadamente pelo trabalho dos pediatras para atender outras demandas, resultantes da pressão da sociedade. É a dialética do absurdo. 

Academicamente, poderíamos analisar outras variáveis supostamente relacionadas com essa redução dos espaços da pediatria. A queda nas taxas de natalidade e fecundidade, por exemplo, com a conseqüente redução proporcional da população infantil, pode explicar a crise atual? Acho que não, pois em números absolutos, a faixa etária abaixo dos 15 anos (fisiologicamente clientela da pediatria), tem aumentado bastante, em decorrência do crescimento populacional e de uma maior democratização do acesso. Segundo o DATASUS, Sergipe encontra-se atualmente (2009) com 2.019.755 habitantes, dos quais 594.179 (29,4%) com idade inferior a 15 anos. Isso mesmo, essa é a clientela da pediatria. Claro que no passado esse percentual já foi bem maior, mas se não houvesse as atuais distorções, e se a oferta dos serviços obedecesse à lógica da epidemiologia, nos teríamos mais vagas de trabalho para os atuais 240 pediatras, número recentemente informado pelo Presidente do CRM. 

A verdade é que as crianças foram esquecidas pelas políticas de saúde nesse inicio do século XXI. O setor privado desestimulado pelo baixo retorno dos investimentos, e o setor público, atolado na contradição entre um discurso ideologicamente coletivista, e uma prática reforçadora da medicina mercantil. Com esse desvirtuamento dos princípios da Reforma Sanitária, a pediatria foi sufocada pela máquina sanitária, pelo completo abandonando dos programas de prevenção e promoção da saúde, e pelo fim do sonho de uma medicina humanizada. 


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