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Erro Médico: Reflexões - Júlio Cézar Meirelles Gomes

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Ex-Presidente do Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal, 1º Secretário do Conselho Federal de Medicina e Pneumologista do Hospital Universitário de Brasília, Brasília-DF.
Erro Médico: Reflexões - Júlio Cézar Meirelles Gomes
No presente trabalho, o autor, além de destacar os aspectos históricos do "Erro Médico", 
relata suas formas, seus conceitos mais antigos e atuais, 
chamando a atenção principalmente para os fatores que concorrem para o mau resultado. 
Chama a atenção ainda para a visão amarga do doente sobre o 
"Erro Médico" no tocante à qualidade e à quantidade do dano produzido, 
além de apontar a juridicidade da questão, tentando separar o que é erro médico 
e o que não se pode entender como tal, principalmente levando em conta a exploração 
dos meios de comunicação. Finaliza apontando as características atuais do "Erro Médico".


UNITERMOS - Culpa médica, responsabilidade médica, mau resultado, má-prática na medicina. 

"Medice, Cura Te Ipsum"


História do erro médico: tradição e códigos

A legislação sobre imperícia médica e sua cominação podem ser encontradas nos primórdios da medicina através de escritos históricos.

Código de Hamurabi (2400AC): "O médico que mata alguém livre no tratamento ou que cega um cidadão livre terá suas mãos cortadas; se morre o escravo paga seu preço, se ficar cego, a metade do preço".

Lei de Talião (Corão): "Olho por olho, dente por dente".

Medicina arcaica (Mesopotâmia): Os honorários médicos eram regidos por lei como também as penalidades caso algum tratamento causasse morte ou danos ao paciente. Se uma operação causasse a perda de um olho o médico teria as mãos cortadas. Em caso de morte de paciente nobre o médico também perderia a vida.

- Medicina grega: Juramento de Hipócrates: "Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar danos ou mal a alguém". O médico das campanhas militares gregas pagava com a vida o insucesso no tratamento de um general ou na cura de um auxiliar favorito.

Medicina árabe: Muçulmanos: Quando um médico fracassava ou caía em desgraça a penalidade prevista era prisão, açoite ou morte.

"Hoje pode se descobrir os erros de ontem e amanhã obter talvez nova luz sobre aquilo que se pensa ter certeza". Este pensamento do médico judeu espanhol Maimônides reflete a preocupação em evitar o erro e aprender com sua ocorrência.

Em suma, a existência de sanções inscritas nos livros sagrados ou nas constituições primitivas denota a atenção dispensada ao erro médico desde os primórdios da medicina.

Elementos míticos

O erro médico na visão do leigo é a antítese da magia inerente aos deuses, ou de quem ungido do poder divino dispõe do poder de cura, isto é, o poder que remite o erro natural. Haja vista que o conceito de doença na medicina antiga era exatamente a versão orgânica da culpa ou expressão material do pecado. Por tradição deduz-se que aquele que cura absolve a culpa, desfaz o erro de origem do semelhante. Por isso, soa como despropósito que o médico possa ele também errar, sobretudo no exercício da cura!

Ressalvada a mitologia grega cujos deuses reproduzem defeitos humanos, não se concebe ao longo da história religiosa que a divindade ou o seu representante não sejam ungidos da virtude da perfeição. Mesmo no plano raso da condição humana é possível argüir no médico atributos singulares como o carisma, que o tornam menos comum do que os comuns e pode ser considerado como "atributo de um indivíduo excepcional dotado de grande autoridade moral" conforme definição de Thomas Mann. Se não, busca-se no pensamento de Max Weber o conceito singular de carisma por expressão máxima de um consórcio de virtudes inerentes à condição humana, a saber "o dom da graça" como definia, em 1920, com magistral economia de elementos.

Se o homem é a medida das coisas, não resta dúvida que o médico deve ser o referencial mais alto. Essa presunção de infalibilidade, que assemelha o médico aos deuses ou sacerdotes, de fato, concorre para uma dramática reversão de expectativa diante do erro consumado, quase insuportável para o leigo, e cria em torno do médico um penoso compromisso com o sucesso, embora seu empenho seja de meios.

As formas possíveis do erro médico

Conceito:

Erro médico é o mau resultado ou resultado adverso decorrente de ação ou da omissão do médico. O erro médico pode se verificar por três vias principais. A primeira delas é o caminho da imperícia decorrente da "falta de observação das normas técnicas", "por despreparo prático" ou "insuficiência de conhecimento" como aponta o autor Genival Veloso de França (1). É mais freqüente na iniciativa privada por motivação mercantilista. O segundo caminho é o da imprudência e daí nasce o erro quando o médico por ação ou omissão assume procedimentos de risco para o paciente sem respaldo científico ou, sobretudo, sem esclarecimentos à parte interessada. O terceiro caminho é o da negligência, a forma mais freqüente de erro médico no serviço público, quando o profissional negligencia, trata com descaso ou pouco interesse os deveres e compromissos éticos com o paciente e até com a instituição. O erro médico pode também se realizar por vias esconsas quando decorre do resultado adverso da ação médica, do conjunto de ações coletivas de planejamento para prevenção ou combate às doenças.

Cabe ao médico lidar com o bem mais precioso para a espécie humana: a vida, com as múltiplas funções de órgãos vitais, com a honra do ser humano e seus valores mais caros e íntimos e ainda com o patrimônio afetivo das pessoas, incluídos seus entes mais queridos. Isso somente bastaria para conceder à medicina um incômodo previlégio entre as ciências humanas e criar sobre ela uma extraordinária expectativa, sem lhe oferecer, por outro lado, recursos operacionais adequados. Tudo lhe é cobrado. Para o leigo e para a sociedade mal-informada a medicina pode tudo e a todo momento. A começar pela origem comum entre médico e sacerdote, que leva à presunção de ser o médico legítimo herdeiro de poderes excepcionais sobre a vida e a morte, uma espécie de representante não autorizado do criador. Tudo isto agravado pela trajetória declinante da Igreja, abrindo espaços na expectativa da sociedade leiga. O dano decorrente do erro médico é quase sempre de caráter irreparável, significa tudo ou nada para quem o sofre. Nada ou quase nada para a espécie humana, mas tudo ou quase tudo para o próprio indivíduo. Isto torna o erro médico grave, sempre grave; o erro médico como reverso da expectativa de quem busca reparar parte ou função do próprio organismo, ou seja, é antítese da cura pretendida. Menos grave seria apenas o médico não curar, não remover a causa eficiente da lesão ou não restaurar a função comprometida e ainda, pasmem, sobrevém novo dano, ou agravamento do primitivo! O dano imposto à condição humana tem por natureza e princípio uma importância excepcional. Compara-se ao dano patrimonial sofrido por uma estátua do mestre Aleijadinho que tem um dedo amputado por vandalismo e sua necessária tentativa de restauração, coisas embora graves, não comparáveis à gravidade da perda de um dedo do próprio operário responsável pela conservação da valiosa estátua!

Ato médico: seus determinantes

Nos grandes centros os hospitais públicos trabalham em regime de pletora contra uma demanda brutal e sufocante, estafando recursos humanos e equipamentos, além de esgotar espaços, e criar focos de resistência à atenção médica gerando uma tensão perigosa para os profissionais de ponta, à frente do paciente, de cara para o drama. Essa situação gera ainda uma perigosa estratégia de seleção de prioridades que, não raro, oferece ao médico a cruel opção de escolher os salváveis entre os menos salváveis, quem sobrevive agora ou corre o risco de não sobreviver mais tarde. A escolha de Sofia.

A mesma ética da escolha entre os náufragos para saber quem ocupa o último lugar disponível no escaler da vida. O sistema nacional de saúde, graças à criminosa dispersão de verbas e recursos, é o grande "Titanic" da medicina.

Abaixo apontamos alguns fatores que determinam a possibilidade ética da qualidade satisfatória

Médico (Ato médico) + Paciente Resultado:

Médico X habilidade + paciente cura/não-cura

Ação Médica paciente Resultados

DIAGRAMA - ATO MÉDICO

SINOPSE DA RELAÇÃO MÉDICO/PACIENTE

intenção cura

suficiência técnica

(Hospital)(nº de paciente)

urgência) (ação seletiva)

Alguns conceitos antigos de erro médico

"Erro médico é a falta do médico no exercício da profissão"; excluem-se dele as limitações da própria natureza, bem como as lesões produzidas deliberadamente pelo próprio profissional para tratamento de um mal maior. Neste caso está a amputação de um membro para tratar uma gangrena, segundo opinião do professor Irani Novah Moraes (2).

Um conceito satírico:

"O erro dos médicos e dos gatos, a terra esconde" (Mollière).

do ato médico:

Ato Médico/Não ato médico - Fatores Intervenientes

- número de pacientes

- complexidade do caso

- qualificação técnica-perícia (graduação/pós- graduação)

- ação eletiva

- hospital - recursos técnicos

- urgência

- qualificação ética para o ato - prudência

- estágio de gravidade

- mercado de trabalho/salário

- motivação: mercantilista/não mercantilista

O professor Oscar Freire 3), estudioso de medicina legal no início do século, e um dos fundadores da deontologia em nosso meio, considerava três tipos de erro médico:

- Erro de tratamento;

- Erro de diagnóstico;

- Erro na dosagem de medicamentos.

O erro médico de diagnóstico segundo aquele autor divide-se em inevitável e evitável. O inevitável é estranho à competência do médico, decorre da falta de recursos, de condições técnicas ou "insuficiência da própria medicina" e diminui com o progresso. Hoje temos uma variável deste conceito de "erro" benefício adverso/dano que é o conhecimento de um grande número de doenças diagnosticadas apenas por recursos extraordinários, como ressonância magnética. A rigor não constitui erro médico, mas insuficiência de meios. Os erros inevitáveis não seriam punidos, segundo o autor. Os evitáveis, por sua vez, segundo ainda Oscar Freire são da responsabilidade direta do médico. Não deixa de ser interessante o conceito de evitabilidade porque coloca o médico como a medida essencial do certo e do errado, a diferença entre o bem e o mal na medicina. Cita um erro de diagnóstico de Billroth, que submeteu à extensão forçada um membro inferior com fratura ignorada do fêmur o que resultou em gangrena e amputação. Ao constatar o erro, comentou com muita propriedade que o caso fora proveitoso porque lhe ensinou "o que não devia ter feito". A propósito, acertar sempre é um atributo sobre-humano, errar é quase humano, mas não aprender com o próprio erro é desumano.

O erro de tratamento

Segundo Flamínio Fávero 4), autor do livro "Deontologia Médica e Medicina Profissional", publicação que abre a literatura ética em nosso país com rara maestria e, impregnada do saber filosófico com toques românticos ao sabor da época, anos 30, o erro se configura por exemplo "na aplicação de aparelhos de fratura, se realizada de modo inconveniente, podem sobrevir sérias complicações como a gangrena e até a morte"; aqui o autor reporta-se mais exatamente aos erros de ação por imperícia, inabilidade na execução de tarefas técnicas ou falta de adestramento no ato curativo. São erros cirúrgicos na atualidade, e a imperícia é a tônica prevalente neste tipo de erro.

Erros na dosagem de medicamentos

É natural que na época, Flamínio Fávero tivesse como preocupação dominante na atividade curativa o controle da arte de formulação, tendo em vista que cabia ao médico prescrever por meio de fórmulas magistrais. Isso exigia farto conhecimento de terapêutica além de memória pródiga para recordar nomes exóticos de substâncias naturais e sua dosagem personalizada. Vale citar que na época prevalecia o nome "genérico" dos medicamentos.

Arremata o mestre em suas notas pitorescas "a responsabilidade pelas conseqüências daí advindas, nestes casos, caberá também ao farmacêutico que aviou a receita". Neste caso a falta de conhecimentos técnicos adequados configura a imprudência em prescrever drogas não bem conhecidas.

Código cubano

O Código de Ética Médica cubano - Princípios de ética médica, recomenda:

"Cuidar de não incorrer em erro médico que resulte de equívoco, ainda que não exista ma-fé, nem elemento de negligência, despreocupação ou ignorância. Devemos evitar a todo custo que o nosso trabalho seja afetado por pressa desnecessária, superficialidade ou rotina. Os erros médicos devem ser conhecidos ou analisados em reunião estritamente médica com a liberdade e a profundidade necessárias que permitam derivar destas experiências e possam prevenir contra sua repetição.

Médico, enfermeira e todo pessoal técnico devem ter coragem necessária para reconhecer seus erros e eliminá-los".

Código espanhol

O Código de Ética espanhol põe em destaque no artigo 21 item 1 o Compromisso do Médico com a qualidade do ato praticado, importante porque exige a priori o melhor, da forma mais apropriada e no momento oportuno. Não nega ao profissional o direito da falha ou do erro involuntário, mas exorta-o na busca da perfeição: "Todos os pacientes têm direito a uma atenção médica de qualidade científica e humana. O médico tem a responsabilidade de prestá-la, qualquer que seja a modalidade da sua prática profissional, comprometendo-se a entregar os recursos da ciência médica de maneira adequada ao seu paciente, segundo a arte médica do momento e as possibilidades ao seu alcance".

O artigo 4º do Código espanhol recomenda: "O médico nunca prejudicará intencionalmente o enfermo nem o atenderá de maneira negligente ... "

Parece ser o único que reporta à possibilidade técnica do erro médico na forma de negligência. Por outro lado o artigo 5º no item 1 reforça a necessidade de uma ação correta e positiva da prática médica quando dispõe que "... está obrigado a procurar a maior eficácia do seu trabalho e um rendimento ótimo dos meios que a sociedade põe a sua disposição".

A visão moderna sobre o erro médico

A visão atual do erro médico está impregnada de interesses corporativos, interesses da mídia e vorazes interesses indenizatórios inerentes à responsabilidade civil do médico. Os interesses corporativos buscam dissimular o erro médico, descaracterizá-lo ou despersonalizá-lo em detrimento da instituição onde ocorre. Nesse caso a falha humana é subestimada pelo comitente, que busca apenas nos meios de trabalho a justificativa para o erro, que logo se converte "no erro sem culpa". A dissimulação por meio da arrogância, da reserva de domínio do conhecimento técnico e sobretudo da feição emblemática da medicina vista como fonte original e exclusiva da benfeitoria humana. Por outro lado, o poder "quase divino" da medicina, o "santo ofício" que não pode ser colocado em julgamento pelos leigos ou hereges. Jamais!

Do outro lado o interesse da mídia cruel, voraz devoradora de fatos para ruminação de lucros exorbitantes! A medicina dispõe ainda de um fascínio especial perante a opinião pública e suas conquistas espetaculares são igualadas aos erros clamorosos na capacidade de atrair leitores. Por fim, os grandes interesses lucrativos e indenizatórios estimulados pela florescente indústria do direito de reparações civis que faz da medicina um prato irrecusável no banquete judiciário das ações por danos e perdas. Existe também o comércio dos seguros de risco contra a má prática, campo infestado de abutres da falsa seguridade social.

Os meios de comunicação têm um papel valioso na denúncia dos erros médicos, mas, por igual, são poderosos e influentes no sentido de induzir na população uma expectativa de cura em desacordo com o poder resolutivo da ciência médica. Têm o poder de fomentar a imagem da infalibilidade, da curabilidade universal, criando destarte frustrações e desespero na sociedade usuária do sistema público de saúde. Daí o conceito popular, grosseiro e equivocado de "Erro Médico" como uma espécie de "graça" não alcançada. É a visão mística do enfermo decorrente da condição de pobre privado de acesso aos meios de cura (situação mais grave do que a sua enfermidade na maioria das vezes). É preciso convir que doença e pobreza não apenas somam como valores negativos mas se multiplicam no tempo e no espaço com efeitos imprevisíveis. Parte dessa frustração social com a medicina, do desencanto das massas com a salvação pela cura, é desviada para as seitas eletrônicas de salvação espiritual, enquanto outra parte mais esclarecida acaba resvalando para os abismos insondáveis da medicina alternativa, modismo cultural da classe média alta.

Fatores concorrentes para o erro médico

São aqueles que contribuem para a geração do erro, aumentam sua incidência ou agravam sua expressão, excluída a ação original do ato médico ou sua ausência.

1- Condições adversas para o exercício da medicina, desde a escassez de recursos materiais, o número excessivo de pacientes ou a limitação dos meios de diagnósticos e cura impostos pelos contratos de medicina de grupo ou seguro-saúde;

2- O atendimento em massa, das massas desassistidas de baixa renda; um padrão massificado de cunho social adverso. A medicina a serviço das campanhas ou esmagada nos pequenos centros médicos localizados em comunidades muito pobres;

3- A morbi-mortalidade crescente da sociedade brasileira;

4- O contato mais freqüente com o médico desprovido de recursos adequados na instituição pública; a par da extraordinária dificuldade de acesso ao próprio sistema público ou privado de alto poder resolutivo;

5- A formação médica deficiente em nível de graduação, que dispensa comentários. A inexistência de educação continuada na pós-graduação;

6- A utilização crescente em medicina de procedimentos de alta complexidade tecnológica, de difícil controle, além da introdução de procedimentos de altorisco;

7- A capacitação tecnológica em descobrir o erro médico, por exemplo: tomografia computadorizada, ecografia, etc.;

8- O mercantilismo desvairado e selvagem, por iniciativa isolada do médico em especialidades rendosas ou em conjunto por meio de cooperativas ou empresas médicas comprometidas com o lucro. É lícito ainda cogitar sobre o estímulo quantitativo existente na prática dos convênios, forma prevalente de remuneração do ato médico.

A visão amarga do doente sobre o erro médico

O que mais parece incomodar o doente vítima do erro médico não é propriamente a extensão ou a qualidade do dano produzido. Na maioria das vezes é a sensação de impotência diante do gerador do dano, da própria categoria detentora do conhecimento singular da medicina. O erro por sinal é uma espécie de inércia da cultura médica, como a linguagem em estado de dicionário, segundo Drummond, inerte e fria. A medicina não se realiza sem o homem versado na cultura médica e adestrado em suas possibilidades técnicas, não se proclama se não houver relação viva entre médico e paciente. Feita essa digressão para destacar a figura do médico ou definir sua grandeza para o paciente, fica a impressão de que a arrogância decorrente da posse do conhecimento técnico, a soberba no seu uso, o não-reconhecimento do erro, leva o paciente lesado ao desespero. Isso nos chega pela leitura proveitosa de um livro escrito por uma jornalista de Goiás, Leda Selma (5), vítima de erro médico que ela conceituou com muita propriedade como "ferida social". A visão da jornalista pôs em destaque a insensibilidade do médico diante dos seus queixumes e reclamos, sua arrogância diante do erro consumado, a absoluta falta de humildade para reconhecer ou pelo menos solidarizar-se com o dano irreparável. O paciente, às vezes, sofre o mesmo escárnio e discriminação do líder que ao protestar contra o governante poderoso se vê obstado pela segurança, que o sufoca, cala e afasta. A soberba do médico e suas infindáveis ocupações com rápidos deslocamentos exercem na prática o mesmo efeito protetor da autoridade, além da sua credibilidade social alta em desfavor do mísero paciente, agora feio, pobre e lesado. A recusa do médico em admitir seu erro é quase uma obsessão patológica, intolerável para quem se presume o legítimo herdeiro da graça divina, o benfeitor número um da humanidade. Isso oferece ao erro do médico uma dimensão social áspera e grave.

A juricidade do erro médico

- O Decreto Lei 20931/32, art. 11: "Os médicos, (...) que cometerem falta grave ou erro de ofício, poderão ser suspensos do exercício de sua profissão pelo prazo de 6 meses a 2 anos e, se exercerem função pública, serão demitidos dos respectivos cargos".

- Código Civil, art. 159: "Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência violar direito ou causar prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano. Art. 1545: "Os médicos (...) são obrigados a satisfazer o dano (...)".

- Código Penal, art. 18 "Diz-se o crime:

I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia".

Art. 133 - "Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono (...)".

Art. 135 - "Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autorização pública (...)".

O erro médico, portanto, do ponto de vista jurídico, é o mau resultado, resultado involuntário do trabalho médico (sem a intenção de produzi-lo). Havendo a intenção, qualifica-se como infração prevista no Código Penal no seu Art. 129: "Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem (...)".

A participação do médico assim torna-se sempre culposa e não dolosa na geração do erro médico. O intuito de produzir aborto, sem intercorrência grave ou lesão imprevista, configura apenas inobservância do código e da lei, mas não erro médico. Não se considera erro a inobservância das normas contidas no Código de Ética Médica, ressalvadas as formas geradoras do erro previstas no art. 29: É vedado ao médico: "Praticar atos profissionais danosos ao paciente, que possam ser caracterizados como imperícia, imprudência ou negligência".

O erro médico versus erro não médico

O médico com certeza não comete mais erros do que outros profissionais de nível superior em saúde ou até fora do âmbito da saúde, como em Direito, Arquitetura, Administração etc. Com certeza, bem menos. Se não vejamos. A diferença principal está na quase proibição formal do erro face à natureza própria do trabalho e seu objetivo de restaurar ou aprimorar a condição humana. Embora para o médico a medicina seja um compromisso de meios, para o paciente e a sociedade ela é vista como uma cruel expectativa de resultados. O doente vai ao médico em busca de resultados, e, quase sempre imediatos, mostra-se ansioso, com sua vida em jogo e não transige na busca de resultados substantivos e positivos. Isso torna quase proibitivo o erro médico. Os resultados são quase sempre visíveis a olho nu, a curto prazo e revestidos de uma expectativa inconveniente. Vale lembrar que o resultado adverso em medicina pode ser sinônimo de morte, diferente do resultado adverso do conserto de um aparelho eletrodoméstico, de um depósito bancário malfeito ou outros serviços prestados pela sociedade. Ao contrário dos erros cometidos pelo médico que podem gerar resultados adversos a médio ou longo prazo, outros serviços malfeitos representam perdas financeiras ou materiais, mas nunca dores imediatas, perda de órgãos ou funções ou de entes queridos.

A contrariedade decorrente do erro médico é quase sempre imediata, elide com a vontade do paciente, bate de frente com sua esperança e significa uma dolorosa reversão de expectativas. O médico lida com a matéria animada, discursiva e dotada de excepcional inteligência, atributos exclusivos da espécie humana e mais, princípio e fim da vida ou medida essencial das coisas. O homem como figura central do universo.

Ademais o conhecimento sobre a complexa estrutura humana é limitado e parcial, se muito alcança 60% do total (numa visão otimista da cultura humana). Enquanto isto, o técnico em eletrônica lida com aparelhos criados pela própria inteligência humana, limitada ao conhecimento do homem e ainda dispõe de um arsenal de peças de reposição. A rigor não deveria cometer erros, ou deveria errar menos do que o médico. Nós médicos não criamos o homem, não temos seu esquema eletrônico ou sua carta de navegação. Nem a chave-mestra dos seus segredos. E nem podemos deixar transparecer nossa limitação científica, exibir os limites da nossa competência que estão muito aquém da expectativa mágica do doente, sob pena de furar os balões encantados da esperança. Por outro lado, menos ainda fomentar ilusões a respeito dos nossos poderes efetivos. Não desmentir a ingênua expectativa do doente nem agravá-la. A nós resta o esforço de acertar por humildade e insistência na consecução dos meios e errar apenas por exclusão, por amor ou obstinação no empenho de obter bons resultados. E não pedir perdão, mas aprender com o erro e usá-lo na próxima vitória. A rigor, o perdão do erro médico não se acha na competência dos Conselhos, mas começa na própria intenção do acerto e termina na mesa de necrópsia ou na revisão do óbito. A condenação dos Conselhos não invalida ou desfaz o erro médico; é apenas uma forma singular de pedir desculpas à sociedade e exigir do médico o mea culpa.

Características do erro médico

No erro médico não se pode perder de vista sua gravidade social quase sempre em desacordo com conceito de gravidade médica e que representa maior ou menor perda de órgão ou função. Ou, senão, a frustração do doente em não alcançar o resultado pretendido; claro, aqui o erro se esvai na falta de compromisso com resultados.

Por fim, alguns caracteres do erro médico como subsídios para sua avaliação epidemiológica:

- A irreversibilidade do dano;

- O imediatismo do resultado adverso;

- A reversão pura e simples da expectativa que motivou o ato médico (falso erro);

- A falha persistente na ação do médico contraposta ao percentual quase desprezível de falha no equipamento, instrumentos ou drogas aplicadas;

- A penúria ou escassez institucional de recursos como fator de indução do erro médico;

- O erro institucional médico-hospitalar (erro médico sem culpa).

Abstract Medical Error: Reflection

In the present work, in addition to emphasize historical aspects of "Medical Error", the author reports its forms, its oldest and more up-to-date concepts, mainly pointing out the factors contributing to a bad result. He also emphasizes the patient's bitter viewpoint on "Medical Error" concerning the quality and quantity of the damage caused to him/her. Furthermore, the author points out juridical aspects of the question, trying to distinguish what is a medical error and what cannot be understood as it that, especially taking into account the exploration of such a theme by mass media. Finally, the author indicates the present characteristics of a "Medical Error".

Referências Bibliográficas
França GV. Direito médico. 6ed. São Paulo: Fundação BYK, 1995.
Moraes IN. Erro médico. São Paulo: Maltese, 1991.
Freire O. Pareceres. São Paulo: Saraiva, 1935.
Fávero F. Deontologia médica e medicina profissional. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1945.
Selma L. Erro médico: uma ferida social. Goiânia: Cartográfica, 1991.

Endereço para correspondência:

SQN 106 - Bloco G - Aptº 305 
70742-900 Brasília-DF

Fonte:CFM

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