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Manual de Denúncia da Tortura


Como documentar e apresentar denúncias de tortura no âmbito do sistema internacional para a proteção dos direitos humanos

(Camille Giffard )




" Para a maioria das pessoas, falar sobre tortura invoca imagens das mais cruéis formas de sofrimento físico e psíquico: unhas arrancadas, choques elétricos, simulação de execuções, obrigar uma pessoa a presenciar a tortura de pais ou filhos, estupro.


Essas imagens geram sentimentos de intensa repulsa em uma pessoa normal e pouquíssimas pessoas podem permanecer indiferentes quando tais sofrimentos são impostos a um ser humano. Publicamente, a condenação da tortura tem se generalizado e, com efeito, é terminantemente proibida por todos os instrumentos atuais de direitos humanos, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.


A violação dessa proibição é considerada um ato tão grave que não pode haver qualquer justificativa legal, nem mesmo em circunstâncias excepcionais ou tempos de conflito. Porém, se examinarmos qualquer relatório do Relator Especial das Nações Unidas sobre a Tortura ou do Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura, ou, ainda, muitos jornais, fica patente que a Tortura não é um fenômeno do passado. Ainda que atualmente seja inaceitável a defesa pública da tortura por parte de um agente estatal, é inegável que a tortura e outros atos a ela relacionados, tais como castigo e tratamento cruel, desumano e degradante, continuam a ser praticados à surdina, longe da visibilidade pública e a portas fechadas.


No entanto, a chave dessa porta está ao alcance de todas as pessoas que tenham sofrido, presenciado ou sido informadas sobre um incidente de tortura. Essa chave é a informação. Somente se esses incidentes forem trazidos à luz da comunidade internacional é que a erradicação pode ter uma chance de êxito. Existe uma série de órgãos cujo objetivo consiste precisamente em garantir que a tortura seja uma coisa do passado.


Porém, na ausência de informação, esses órgãos ficam de mãos atadas. Raramente podem examinar uma situação com seus próprios olhos: seus poderes de investigação em primeira mão são, na maioria das vezes, muito limitados. Assim, como pode o Relator Especial das Nações Unidas elaborar um relatório sobre o alcance do problema em todo mundo, ou em um país específico, se ninguém lhe enviar informações? Como pode o Comitê Europeu para a Prevenção Contra a Tortura saber quais categorias de detentos correm maior risco em um determinado país se não receber nenhum relatório? A resposta para essas duas perguntas é a mesma e é muito simples: não podem.



Se a informação é a chave, logo segue que as organizações não-governamentais (ONGs) são as que a possuem. Tal é a dependência que os organismos internacionais têm delas que a falta de liberdade de atuação das ONG0s em um determinado país pode muito bem significar que não será possível atraia a atenção da comunidade internacional para a situação desse país, ainda que as violações dos direitos humanos ocorridas em tal país a mereçam. Isso se deve ao fato de que é mais simples prestar atenção e dedicar recursos aos Estados sobre os quais existe muita informação.


A única forma de abrir os olhos da comunidade internacional para as situações menos conhecidas é garantindo que informações confiáveis cheguem até elas. Nesse contexto, é impossível superestimar a importância da função desempenhada pelas ONGs na batalha em prol da erradicação da tortura.


Embora algumas ONGs especializadas tenham adotado excelentes métodos de denúncia, muitas ONGs menos experientes não são conscientes da importância da informação que fornecem ou nunca tiveram a oportunidade de aprender como apresentá-la da melhor forma.


No contexto específico de denúncias de tortura, infelizmente acontece de uma parte significativa da informação recebida dessas ONGs se perder, não porque as denúncias sejam infundadas, mas porque são omitidos fatos importantes, porque a denúncia é redigida em uma linguagem excessivamente política ou porque é apresentada em um idioma que a pessoa que recebe a informação não compreende e não dispõe de recursos para sua tradução.


Em outros casos, talvez devido à falta de familiaridade com as diferentes funções, e muitas vezes funções paralelas, dos diversos organismos internacionais, as ONGs enviam sua informação unicamente para uma autoridade que não tem o poder necessário à consecução dos resultados desejados. O Relator Especial das Nações Unidas Contra a Tortura, por exemplo, não pode ordenar a um Estado que pague uma indenização a uma vítima de tortura, porém o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, por sua vez, pode fazê-lo.


O presente manual destina-se principalmente às ONGs com menos experiência, sobretudo as ONGs menores, que atuam no âmbito nacional ou comunitário e que desejam se desenvolver e participar mais ativamente da denúncia de casos de tortura. 
Não se trata de proporcionar uma formação jurídica nem médica, mas sim oferecer informações centradas mais no processo de denúncia propriamente dito. Desse modo, este manual tem por objetivo capacitar essas ONGs para que produzam informações de alta qualidade sobre incidentes e padrões sistemáticos da prática da tortura, a fim de melhorar a utilidade da informação para os organismos internacionais, bem como ajudar essas ONGs a selecionar o procedimento ou os procedimentos mais adequados aos quais dirigir a informação à luz do próprio resultado que se deseja.


O tema central do manual é a tortura, mas boa parte do que nele se explica seria igualmente relevante no contexto de outras violações dos direitos humanos. Ainda que uma denúncia não seja uma violação da proibição da tortura, pode ser uma violação de outra norma dos direitos humanos, por exemplo, do direito à liberdade e à segurança da pessoa, ou o direito a um julgamento justo. Apesar de essas violações não serem o objeto central do presente manual, os leitores devem ter presente que também existem recursos para as violações de direitos humanos que não a tortura.


Cabe lembrar que seguir as orientações estabelecidas no presente manual não constitui garantia de obtenção de um determinado resultado de um organismo internacional específico, e que muitas vezes poderá parecer que se conseguiu-se muito pouco em um determinado caso.



Ainda que não se possa evitar a frustração e a decepção nessas ocasiões, convém lembrar que a luta pela erradicação da tortura é um processo longo e lento e que não deve ser medido unicamente em função de resultados específicos.


Toda informação confiável, coletada meticulosamente, constitui uma arma nessa luta e cada porta que se abre é uma porta a menos para que os torturadores se escondam atrás dela."
Camille GiffardManual de Denúncia da Tortura

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